De quem é a cidade? - Parte II

Por Rafael da Silva Tangerina

No texto anterior, fiz uma breve contextualização sobre a construção e desconstrução de territorialidades urbanas, evidenciando as relações de poder que alguns grupos exercem, em especial, nas grandes cidades. Farei agora, um apanhado de considerações de alguns cientistas sociais que se debruçaram em pesquisas e análises sobre os chamados “territórios da prostituição”.

RIBEIRO e MATTOS (1996) destacam que na prostituição feminina de rua, existe uma relação constante entre as mulheres, clientes, vizinhança, comércio, transeuntes, etc. Desta forma, este contato mais amplo com o espaço é fundamental para refletirmos sobre o espaço da cidade em sua diversidade, tanto de pessoas quanto de histórias, sobre um espaço específico, concreto, histórico, político e cultural.

A atividade das mulheres de rua é essencialmente urbana para alguns autores (RAGO, 1991 e 1996; ENGEL, 1986; ROBERTS, 1998) Estes consideram fundamental a relação entre capital, circulação de pessoas e prostituição. Para eles, as cidades favorecem tanto o anonimato quanto os encontros, além de diversas formas de atuação e de controle. 

ENGEL (1986) mostra que o lidar com a prostituição no Rio de Janeiro, no período de 1845 a 1890, incluía fatores políticos, ideológicos e culturais. A maneira de se ver as prostitutas envolvia não só o ideário feminino da época, a dicotomia entre as "boas moças e as outras" como, também, produzia uma série de normas e legislações que procuravam controlar a prostituição.

SOARES (1992) ao estudar em arquivos médicos e policiais da segunda metade do século XIX no Rio de Janeiro, concluiu que, independentemente do motivo a levar as mulheres à prostituição, era decisivo o crescimento da cidade, a ampliação de seus limites, inclusive para antigas zonas de mangue antes desvalorizadas. Essas mudanças no espaço urbano provocavam, também, mudanças no comportamento dos homens e mulheres a viverem nos centros urbanos.

SOARES (1992) nos esclarece que a reorganização e a modernização do espaço urbano envolviam um processo de mudança ideológica e cultural, no qual a necessidade de controle da prostituição era apenas mais um fator. E, para sustentar este ideário, a atitude mais conveniente seria a intervenção, muito mais do que sobre os corpos, sobre os discursos e sobre as práticas relacionadas aos discursos. Nesse contexto, o discurso médico seria um importante aliado, pois, através do médico, a prostituição passaria a ser tratada como doença. E, em um espaço que tem a higienização como meta, deveria ser controlada e aniquilada.

RAGO (1991) estudou a prostituição na cidade de São Paulo, no período de 1890 e 1930. São Paulo aparece como uma cidade em franco desenvolvimento, e a prostituição como um fenômeno urbano de uma sociedade baseada em um sistema de trocas. Neste contexto, a figura da prostituta seria, segundo os registros do início do século, uma imagem da modernidade, pois mostrava que as mudanças sociais no espaço urbano interferiam também nos papéis atribuídos às mulheres, as quais até então, enclausuradas no universo doméstico. Essa revolução no espaço permitia tanto a valorização da prostituta como representante das noites e das festas em bares e cafés, quanto uma leitura da degeneração feminina.

Diante deste panorama, a ebulição da cidade favoreceria a criação de não-lugares, em oposição a lugares (ler texto de Lawrence Malanski “O que é lugar?” neste mesmo blog), com vantagens e desvantagens para o sujeito. 

Em contrapartida, a existência de não-lugares representados por espaços de circulação - como rodoviárias, aeroportos, lanchonetes, clubes, hotéis - comuns em todas as cidades, traria a ameaça de um não-lugar sem sentido ou história. O não-lugar é um risco de aniquilamento para o sujeito visto que, o estatuto de sujeito implica a definição de lugares, de nomes, de histórias que limitam caminhos (CARVALHO 2000).

A cidade seria um lugar de perdições e de fuga, a impor à pessoa o risco de um não-sentido, de se perder. Ou, ao contrário, ao deparar-se com o lugar nenhum, criar um lugar para ser e povoá-lo de afetos. Ao fazerem um mapeamento das áreas de prostituição na cidade do Rio de Janeiro, RIBEIRO e MATTOS (1996) mostram como os afetos interferem na dimensão do espaço e resistem ao tempo e às mudanças de contexto. Os pontos que, no Rio antigo, constituíam locais de circulação de capital e pessoas e eram considerados de grande importância para a economia da cidade, atualmente são pontos de prostituição. Como por exemplo: as Ruas Mem de Sá, Frei Caneca, Praça Tiradentes, Passeio Público, Central do Brasil e Praça Mauá. 

CARVALHO (2000) salienta que os profissionais do sexo (mulheres, homens e travestis) detêm um poder e uma autonomia sobre o espaço e constituem uma territorialidade própria, territorialidade cujos códigos delegam poder a seus ocupantes e permitem o controle de presenças e de ausências, nestes trechos da cidade.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, A.J.P. da S. Regulamentação Sanitária da Prostituição. In: Anais da Academia de Medicina do Rio de Janeiro. Rio, Laemmert, 1890, t. LV, p. 237. Apud: ENGEL, M. Meretrizes e doutores: saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840 - 1890). São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 112. 

CARVALHO, S. As virtudes do pecado: narrativas de mulheres a "fazer a vida no centro da Cidade". [Mestrado] Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública; 2000. 89 p.
RAGO, M. Do Cabaré ao lar, a utopia da cidade disciplinada. Rio de Janeiro, Paz e terra 1997.

_________. Os prazeres da noite: Prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo, São Paulo Paz e Terra, 1991.

SOARES, Luiz Carlos. Tentativas de controle da prostituição carioca no séc. XIX, Rio de Janeiro, ed. Brasil, 1985.

RIBEIRO, M. Prostituição de rua e turismo: a procura do prazer na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, GEOUERJ - Revista do Departamento de Geografia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, n.3, junho de 1988, p. 53 - 65. 

__________. Territórios da Prostituição de Rua na Área Central do Rio de Janeiro. IN: RIBEIRO,  Miguel Ângelo (Org.). Território e Prostituição na Metrópole Carioca. São João do Meriti, Rio de Janeiro: Ecomuseu Fluminense, 2002.

ROBERTS, N. As Prostitutas na História. RJ. Tradução de Magda Lopes. Record: Rosa dos Tempos, 1998.
SILVA, H. R. S. Travesti – a Invenção do Feminino – etnografia. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, Iser, 1993, p.16.

SILVA, B., de. Apud PERLONGHER, N. O negócio do michê: prostituição viril em São Paulo. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 69.

SILVA, J. C. O conceito de território na Geografia e a territorialidade da prostituição. IN: RIBEIRO, Miguel Ângelo (Org.). Território e Prostituição na Metrópole Carioca. São João do Meriti, Rio de Janeiro: Ecomuseu Fluminense, 2002.

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